Empresta sua reputação?

Empresta a sua reputação

Alguém pede sua caneta Bic emprestada, pode ser que você a entregue de bom grado. Seria o mesmo se fosse seu carro, por exemplo? Ou, quem sabe, um namorado ou esposa?

A Mondelez, dona da Lacta e da marca de chocolates Bis, anunciou que está reavaliando sua estratégia de influência. Essa reavaliação inclui, além de analisar os números de audiência de um influenciador, avaliar quantitativamente a reputação da personalidade a ser apoiada, patrocinada ou contratada como porta-voz, evitando perfis envolvidos em opiniões políticas e outras questões mais sensíveis a alguma parcela de seu público de massa.

A decisão de se precaver contra possíveis efeitos negativos deste tipo de propaganda ocorre depois de polêmica envolvendo a participação do influenciador digital Felipe Neto com a marca Bis. Hoje ativista político, o rapaz, que estreou nas redes online com vídeos humorísticos nos anos 2010, hoje tem uma audiência somada de 45 milhões de seguidores só no YouTube, um ativo nada desprezível para estratégias comunicacionais. Só para comparar, o Jornal Nacional, um dos programas de TV aberta de maior audiência do país, é assistido em média por menos de 80 milhões de pessoas por dia.

Mas a iniciativa da Mondelez levantou críticas à marca por parte de oponentes do garoto-propaganda no campo político. O que traz uma questão: até que ponto a reputação pode ser adquirida ou é “emprestável”, inclusive como via de mão dupla, já que a marca também “empresta” sua reputação ao influenciador, digital ou não, cuja fama busca como forma de apoio.

Um exemplo inesquecível foi a participação do cantor Roberto Carlos, vegetariano conhecido, em campanhas do frigorífico JBS, cuja carne sequer provou em comercial da marca. Embora famoso desde a década de 1960, a ação colocou em cheque o valor do “empréstimo” de imagem a um indivíduo com valores pessoais contrários ao da marca, arranhando tanto a imagem de um como quanto do outro.

Um exemplo mais atual, e de mão dupla, é o movimento de luxo silencioso (quiet luxury), tendência refinada e discreta para o mundo da moda que valoriza sutilezas como qualidade, corte e atemporalidade das peças, em contraste com a ostentação e a necessidade de exposição indiscriminada de marcas.

Imagem de 明辉 李 por Pixabay

Neste caso, a reputação do indivíduo – possivelmente um consumidor mais abastado – conta pontos extras no encontro com a reputação das marcas que veste, mais facilmente “reconhecíveis” por fazerem parte de seu universo reputacional. Um indivíduo fora deste círculo pode não ter o mesmo sucesso, ou reconhecimento, o que gerou há poucos anos o movimento contrário (tipo “quanto custa o outfit?”), com exibição de preços pagos por peças de vestuário, acessórios e que tais em vídeos diversos internet afora, como uma tentativa de “valorizar” também o “exibidor” das marcas.

Produtos, marcas e organizações com boa reputação podem, e devem, se preocupar com o “empréstimo” de reputações de seus patrocinados e afins. Inclusive porque também cederá a ele parte da sua boa reputação, que é construída tijolo a tijolo, com empenho de tempo, dinheiro e dedicação. Quem quer mantê-la deve avaliar suas relações em todos os campos, seja na área de influência digital, na portaria de sua sede, no respeito aos funcionários ou na bolsa de valores. É assim que vai mostrar, sutilmente, quanto custa seu outfit.

Irracionalidade, audiência e reputação

Na semana passada, o X (antes Twitter), um dos termômetros atuais das tendências que vagam pelo imaginário humano, registrou em seus assuntos mais quentes o assunto “Lacta”, ocupando o quinto lugar entre os mais comentados do dia.

O gatilho foi o compartilhamento e reações em massa de um vídeo gravado por um usuário da rede mostrando caixas de bombons da concorrente Nestlé. O cidadão explica que suas crianças haviam pedido caixinhas da marca Bis, mas o produto teria sido vetado por conta do patrocínio da fabricante Lacta ao influenciador Felipe Neto, “aquele vagabundo, aquele lixo, um esquerdista que faz apologia a terrorista e fica falando besteira para as nossas crianças”, segundo esse cidadão.

Em contrapartida, os fãs de Neto, conhecidos na internet como “corujas” – e do chocolate castigado – saíram à frente e galgaram a terceira posição do ranking com a hashtag “#CorujasPedemBis”.

Imagem: Post Felipe Neto no Twitter https://twitter.com/felipeneto/status/1711848712480116768/photo/1

O episódio poderia ser até anedótico, não fosse a polarização acentuada em torno de qualquer tema a partir de uma definição de liberdade de expressão que inclui ofensas pessoais, ataque a marcas ou instituições, em um simulacro de comportamentos antes restrito, digamos, a temas como discussões futebolísticas em defesa do time do coração.

Da mesma forma como a paixão pela camisa, os mais diversos temas estão saindo do campo da lógica para arroubos emotivos onde a última camada é a racionalidade. Outro exemplo são as críticas exacerbadas sobre a presença de publicidade do governo federal em mídia de massa e, particularmente, na emissora líder de audiência, elevada por alguns defensores do atual governo a inimiga do povo.

A questão é que a racionalidade e a lógica dos números se apoiam em audiência para seleção de iniciativas de apoio a marcas, como mídia e patrocínios. Em que pese esforços como do movimento Sleeping Giants, para mostrar a grandes marcas sua presença junto a veículos propagadores de notícias comprovadamente falsas – mesmo com grande audiência –, são os dados os principais direcionadores de estratégias profissionais de construção de marcas.

Felipe Neto, por exemplo, entrou para o ranking dos cinco maiores youtubers do mundo, com mais de 44 milhões de inscritos em seus canais. Ele é sócio da agência Play 9, uma das dez maiores no campo de marketing de influência digital no país, com investidores de peso como Arezzo. A TV Globo ainda mantém médias como um terço da audiência da TV aberta do país. Quando o FlaFlu ideológico busca criar um desvio padrão nas estatísticas alguma coisa vai dar muito errado.

Saber navegar neste universo não é para amadores. Patrocínios, divulgação e estratégias de emprego de mídias, sociais ou de massa, são alguns dos muitos dentro de uma enormidade de fatores que ajudam a construir a reputação. Ainda bem que o mercado está repleto de profissionais competentes o suficiente para não se deixarem levar pelo fígado na hora de estabelecer seus planos e táticas para construir e manter em alta essa questão tão diáfana quando decisiva para o resultado dos negócios, a reputação de empresa, marcas, produtos e serviços.